Lei da Burca, Hipocrisia Estatal e Subalternidade Feminina: Uma Leitura a partir de Spivak
Reflexões críticas sobre dominação, agência e silenciamento
A proibição da burca revela a persistência de estruturas de dominação e silenciamento. Spivak ajuda-nos a questionar quem fala, quem decide e quem é silenciado.
A recente aprovação da lei que proíbe o uso da burca em espaços públicos suscita debates acesos sobre liberdade, segurança e identidade. Embora apresentada como uma medida destinada a garantir a identificação facial e a proteger o interesse público, tal legislação revela camadas mais profundas de controvérsia, sobretudo quando analisada à luz da teoria crítica de Gayatri Chakravorty Spivak sobre subalternidade e silenciamento. No ensaio Pode a subalterna tomar a palavra? (Orfeu Negro, 2021), Spivak problematiza precisamente as formas como o discurso ocidental “fala por” mulheres do Sul global, silenciando-as sob a aparência de emancipação. A questão que se coloca, portanto, não é apenas jurídica, mas também ética e política: quem decide sobre o corpo da mulher e que vozes são efetivamente ouvidas neste processo?
Fotografia: Burca afegã, de Steve Evans (2005). CC BY 2.0 – (Wikimedia Commons)
A justificação oficial da lei — centrada na segurança e na necessidade de identificação — mostra-se frágil quando confrontada com práticas quotidianas: capacetes de motociclistas, máscaras policiais, balaclavas ou até disfarces carnavalescos continuam a ser permitidos, mesmo cobrindo integralmente o rosto. Esta incoerência sugere que o alvo real não é o ato de cobrir o rosto, mas a expressão religiosa e cultural de determinados grupos, revelando motivações ocultas como a islamofobia e o racismo institucional. A seletividade da legislação expõe a hipocrisia dos seus proponentes, que, sob o pretexto de proteger a sociedade, acabam por reforçar estereótipos e marginalizar ainda mais comunidades já vulneráveis.
É inegável que a imposição social da burca pode constituir uma forma de opressão sobre o corpo da mulher, reproduzindo padrões patriarcais que limitam a sua autonomia. No entanto, a proibição estatal não representa uma libertação, mas sim outra modalidade de dominação: o Estado, ao legislar sobre o que a mulher pode ou não vestir, perpetua o controlo externo sobre a sua corporeidade. Assim, a mulher que usa burca é duplamente dominada — primeiro pelo mandato social do seu contexto cultural, depois pela intervenção estatal —, sem que a sua voz seja realmente considerada no debate público.
Spivak, ao questionar “Pode o subalterno falar?”, alerta para o perigo de se falar pelo Outro, apagando a sua subjetividade e agência. No caso da proibição da burca, repete-se a ironia que a autora aponta reiteradamente ao longo da sua obra: “os homens brancos estão a salvar as mulheres morenas dos homens morenos”. Esta frase denuncia não só a arrogância do Ocidente ao tentar “libertar” a mulher muçulmana, como também evidencia o silenciamento sistemático a que ela é sujeita, tanto pelo patriarcado local como pelo poder colonial e estatal. Em vez de escutar as mulheres afetadas — as suas razões, escolhas e desejos —, o discurso dominante apropria-se da sua narrativa, tornando-as subalternas cuja voz é traduzida, distorcida ou eliminada.
A proibição da burca, longe de ser um gesto emancipador, revela a persistência de estruturas de dominação e silenciamento. O verdadeiro desafio reside em criar espaços onde as próprias mulheres possam expressar as suas experiências e decisões, sem mediações paternalistas ou autoritárias. Só assim será possível avançar para uma sociedade onde a agência feminina seja respeitada e a subalternidade, tal como denunciada por Spivak, possa começar a ser efetivamente combatida. O debate sobre a burca exige menos tutela e mais escuta, menos imposição e mais diálogo.
Referência bibliográfica
Spivak, G. C. (2021). Pode a subalterna tomar a palavra? (Trad. António Sousa Ribeiro). Lisboa: Orfeu Negro.
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Por Orlando Figueiredo, desde as margens.
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