O Paradoxo da atribuição do Nobel da Paz a Maria Corina Machado
Entre o conservadorismo moral e a violência estrutural
A atribuição do Prémio Nobel da Paz a Maria Corina Machado revela mais do que uma decisão política: traduz uma opção ideológica profundamente marcada por uma leitura liberal e conservadora da noção de “paz”. Longe de reconhecer os processos coletivos de emancipação ou as lutas contra as desigualdades estruturais, o Comité Nobel parece ter premiado uma figura que encarna, simultaneamente, o conservadorismo católico e o fundamentalismo de mercado — duas forças que historicamente contribuíram para a manutenção da ordem social desigual.
Machado tem-se afirmado como defensora de um neoliberalismo económico clássico, no qual o Estado deve intervir o mínimo possível e a propriedade privada é sacralizada. A sua oposição a políticas de expropriação e nacionalização assenta na convicção de que transformar empresas privadas em públicas constitui um “roubo”, ignorando que muitas dessas empresas e fortunas familiares emergiram precisamente da expropriação histórica do trabalho — um processo de acumulação primitiva que, como lembrava Marx, funda o próprio capitalismo. Assim, o discurso moralizante da candidata agora laureada oculta as formas de violência económica e simbólica que sustentam a desigualdade contemporânea.
Do ponto de vista ético e político, o Nobel entregue a Maria Corina Machado reafirma uma conceção restrita de paz, entendida como estabilidade institucional e ausência de conflito armado, em detrimento de uma paz positiva — aquela que, segundo Johan Galtung(para citar um norueguês), exige justiça social, redistribuição e participação equitativa. A “paz” que Machado representa é, antes, a pacificação das tensões sociais em nome da liberdade de mercado: uma paz neoliberal, onde o conflito é reprimido e as causas estruturais da exclusão permanecem intocadas.
A dimensão religiosa da sua trajetória política reforça ainda uma moral de obediência e caridade, típica do catolicismo conservador latino-americano, que substitui a transformação social por atos individuais de piedade. A combinação entre fé e mercado produz um imaginário onde o sofrimento dos pobres é naturalizado e a riqueza dos poderosos é legitimada como sinal de mérito e virtude.
Importa também sublinhar que a trajetória internacional de Maria Corina Machado a coloca no centro de uma rede de alianças políticas que inclui a extrema-direita europeia, o trumpismo norte-americano e o apoio declarado a Benjamin Netanyahu — símbolos de uma política global baseada no autoritarismo securitário, no nacionalismo económico e na demonização do outro. O seu apoio público às sanções impostas à Venezuela pelos Estados Unidos e pela União Europeia, medidas que agravaram significativamente as condições de vida do povo venezuelano, expõe a contradição entre o seu discurso de “libertação” e o impacto real das suas posições. Ao sancionar o país, penalizou-se a população, não o regime: um custo humano que dificilmente pode ser reconciliado com a ideia de paz.
Neste contexto, o Nobel da Paz concedido a Maria Corina Machado não consagra uma pacificadora, mas uma gestora ideológica da desigualdade. É um prémio que reafirma a hegemonia de um modelo económico e moral que perpetua a violência estrutural — agora sob o manto da legitimidade internacional. A paz que assim se celebra não é emancipatória, mas disciplinar: é a paz dos mercados, das fronteiras reforçadas e das vidas hierarquizadas.
E não — isto não é uma declaração de apoio a Nicolás Maduro. É, antes, uma recusa em aceitar que a paz se confunda com a submissão ao mercado e à desigualdade.
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Por Orlando Figueiredo, desde as margens.
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