Do pós-guerra a Stonewall – Parte I: A Ameaça Lavanda

A perseguição do macarthismo à comunidade LGBTQ+ que foi apagada dos livros de história


Este é o primeiro de alguns artigos que tenciono publicar ao longo das próximas semanas e que buscam contextualizar historicamente os acontecimentos que deram origem à revolta de Stonewall no dia 28 de junho de 1969.


A revolta de Stonewall é frequentemente tomada como o início do movimento gay nos EUA que acabou por se disseminar por todo o mundo. Os acontecimentos de 28 de junho de 1969 (pouco mais de dois anos após o meu nascimento) foram de tal forma marcantes que a celebração Pride se faz um pouco por todo o mundo nesse mesmo dia e junho é tido pelo mês de celebração do Orgulho LGBTQ+. Porém, a anteceder este dia há uma conjuntura política e social dos EUA que tem de ser entendida para melhor compreender os acontecimentos de Stonewall. A Guerra Fria e o macarthismo jogam aqui um papel da maior importância. Neste artigo abordo a ameaça lavanda – lavender scare – e de como se encontraram as desculpas mais absurdas para institucionalizar uma perseguição às pessoas LGBTQ+ que durou décadas nos EUA do pós-guerra.


Foto: Protesto liderado por Frank Kameny (1925 – 2011), um dos milhares de homossexuais que em 1957 perdeu o seu posto de trabalho devido às políticas macarthistas.


Macarthismo

A Guerra Fria é o período do pós-guerra que se inicia em 1947 e termina apenas com a queda da URSS em 1991. Durante este período, a contenda entre o capitalismo dos EUA e o comunismo da antiga URSS deu início à conhecida corrida ao armamento nuclear destas duas potências e respetivos aliados. O período decorrido entre 1947 e 1957 ficou conhecido como macarthismo, pelo papel preponderante que teve o republicano Joseph McCarthy, senador por Wisconsin, durante a década referida. O macarthismo caracterizou-se pela propaganda anticomunista e de promoção do medo da influência do comunismo nas instituições governamentais dos EUA. No início dos anos 50, McCarthy, com a desculpa de lutar contra a Ameaça Vermelha — Red Scare, montou uma verdadeira caça às bruxas nos departamentos e agências do governo federal dos EUA que visava “libertar” as estruturas governamentais de comunistas e seus simpatizantes. Às pessoas foram exigidas provas de lealdade e definiram-se perfis de pessoas desleais que incluíam os comunistas e seus associados, além de pessoas conhecidas pela sua ebriedade natural, perversão sexual, infâmia moral, irresponsabilidade financeira e ocorrências penais.

Da ameaça vermelha à ameaça lavanda

Com a inclusão de uma suposta 'perversão sexual' enquanto perfil de pessoa desleal, e sua associação à homossexualidade, instalou-se um clima de pânico conhecido como 'Lavender Scare' (Ameaça Lavanda), uma campanha de perseguição às pessoas LGBTQ+ nos EUA durante a Guerra Fria. Estavam abertas as portas a uma das mais cruéis e vis campanhas de perseguição às pessoas LGBTQIA+ do século XX.

De acordo com McCarthy e os seus apoiantes, as pessoas LGBTQ+ eram particularmente vulneráveis e suscetíveis de serem manipuladas, por medo de serem expostas à sociedade como “pervertidos sexuais”. Não havia dúvidas, nas mentes preconceituosas e assustadas dos estado-unidenses, que os soviéticos viriam atrás das pessoas LGBTQ+ para chantageá-las com vista a obter informações sobre o governo federal. Em 1950 as pessoas LGBTQ+ passaram a ser oficialmente uma ameaça, ao lado dos simpatizantes comunista, à segurança dos EUA. Em consequência, a sua perseguição e eliminação dos diversos departamentos e agências do governo federal não só era justificada como incentivada, ainda que sem quaisquer evidências de tal.

Sete anos mais tarde, em março de 1957, foi emitido pelo United States Navy Board of Inquiry um relatório que ficou conhecido como o Crittenden Report. Nesse relatório dizia-se explicitamente que “não foi encontrada nenhuma base sólida para a crença de que os homossexuais representavam um risco de segurança” e que “nenhuma agência de informação, tanto quanto se pode saber, apresentou quaisquer dados factuais perante esse comité para apoiar estes pareceres”.  Como as conclusões do relatório não serviam os interesses do poder instituído, este foi classificado e manteve-se secreto até 1976 – 20 anos. Ainda assim, depois da sua divulgação os oficiais da marinha negaram a inexistência de quaisquer evidências que sustentassem as conclusões do relatório. Em setembro de 1981 a marinha continuava a negar a inexistência de provas. Os dados recolhidos acabaram por ser conseguidas nesse mesmo ano através de uma ação judicial colocada por alguns advogados e revelaram o que já toda a gente sabia – não havia quaisquer evidências que sustentassem a tese de que as pessoas LGBTQ+ eram uma ameaça à segurança dos EUA.

Não deixo de me questionar que tipo de ódio e preconceito leva pessoas a agir de forma tão cruel e desumana.

Até ao lançamento da campanha homofóbica de McCarthy, Washington DC tinha uma comunidade gay ativa e numerosa. Porém, com o passar do tempo, a continuidade do macarthismo e as suas campanhas de perseguição às pessoas LGBTQ+, a imagem da comunidade perante a sociedade foi-se degradando cada vez mais. Entretanto, a valorização da família heterossexual e o estabelecimento dos papéis de género e ainstitucionalização do patriarcado estabelecia-se de forma vincada nesta sociedade do pós-guerra e propagava-se a outras regiões do mundo. Esta situação, associada ao facto de que a comunidade psiquiátrica, por preconceito e não por evidência científica, considerava a homossexualidade como um transtorno mental, foram contributos importantes para o crescimento da homofobia na sociedade estado-unidense.

Apagamento histórico

Não obstante o macarthismo ser um período histórico bem conhecido e ensinado nos cursos de história um pouco por todo o mundo, a dimensão homofóbica e de perseguição às pessoas LGBTQ+ é muito menos conhecida e omitida desses relatos, como refere Suyin Haynes, num artigo publicado na revista Time a 22 de dezembro de 2020. Também aqui o apagamento das pessoas LGBTQ+ e da nossa história é um facto, como de resto o é em muitas outras circunstâncias.

Foi somente em 2004, mais de 50 anos depois da subida de McCarthy ao poder, pela pena do historiador e professor na Universidade da Flórida David K. Johnson e do seu livro Lavender Scare – The Cold War Persecution of Gays and Lesbians in the Federal Government que esta capítulo trágico da história cuir, convenientemente abafado pelas autoridades estado-unidenses, veio a público. O nome do livro não é obra do acaso. Johnson socorreu-se da expressão lavender lads que o senador republicano Everett Dirksen usava frequentemente para se referir derrogatoriamente aos homens homossexuais empregados pelo departamento de estado. Em 1952, Dirksen afirmou que a vitória dos republicanos era a garantia da remoção dos lavender lads do departamento de estado. Em 2017 saiu um documentário, dirigido por Josh Howard e narrado por Glenn Close, intitulado The Lavender Scare, baseado no livro de David K. Johnson. No dia 23 de março de 2023 foi lançada uma nova edição revista pelo autor.

Em setembro de 2005 foi colocado em cartaz um filme intitulado Good night and good luck, dirigido por George Cloney, sobre o período macarthista e a sua vindicta aos comunistas. O filme, que tem a duração de 1h 33m não faz qualquer referência à perseguição aos homossexuais levada a cabo pelo senador republicano. Mais uma vez o apagamento da nossa história é a norma.

Perseguição

Com o argumento da luta contra a “ameaça vermelha”, normaliza-se a institucionalização governamental da luta contra a quimérica “ameaça lavanda”. Políticas homofóbicas são implementadas em todos os níveis hierárquicos do governo federal estado-unidense e, a partir do momento em que se associa a perversão sexual à homossexualidade e se inclui esta nos critérios de suspeição das pessoas LGBTQ+, centenas de milhares de pessoas homossexuais, bissexuais, mas também heterossexuais, são perseguidas por mais de três décadas.

Novos regulamentos políticos foram estabelecidos com o objetivo específico de identificar, denunciar e eliminar pessoas cuir dos departamentos estatais do governo federal estado-unidense.

As entrevistas a pessoas suspeitas de “perversão sexual”, a busca de sinais reveladores da orientação sexual das pessoas ou as rusgas a bares que os funcionários do departamento de estado alegadamente homossexuais frequentavam eram realizados a coberto dos novos procedimentos. Os bares gay e outros locais de encontro de pessoas gays e lésbicas eram revistados na busca de funcionários de departamento de estado e as visitas à própria casa não eram incomuns. As pessoas eram acusadas e despedidas pelo simples direito de associação. Porém, as perseguições não se ficaram por aqui. Ter familiares ou amigos homossexuais era frequentemente razão suficiente para que a pessoas fosse também considerada um “pervertido” conduzindo à sua exposição pública e perda do posto de trabalho.

Mas isto foi apenas o começo. Em 1953 o presidente Eisenhower assinava uma Ordem Executiva explicitamente homofóbica que só foi revogada em agosto de 2017. Sim, ainda não completou oito anos de revogação. Mas este é assunto para abordar no próximo artigo.


#história #eua #homofobia #lgbtq #lgbt #lgbtqia #cuir #kuir #cuirfobia #Caderno1


Por Orlando Figueiredo, desde as margens.
queerlab@kuircuir.pt


Queres receber as próximas palavras nas margens da tua caixa de entrada? Subscreve o blogue.