Do pós-guerra a Stonewall – Parte IV: Ecos de Rebeldia – Vozes Cuir Antes de Stonewall” (1964–1968)
Raízes da revolta – A luta pelos direitos LGBTQIA+ antes de Stonewall
Na parte IV deste caderno sobre Stonewall, detalho eventos importantes na luta pelos direitos LGBTQIA+ nos Estados Unidos antes dos famosos motins de Stonewall. Destaca-se a primeira manifestação conhecida em 1964, liderada por Randy Wicker, em resposta à quebra de confidencialidade pelo exército estadunidense, que propositadamente divulgou dados de homens gays que serviam na insituição. Em 1965, vários protestos ocorreram, incluindo um baile de máscaras em São Francisco que resultou em confrontos com a polícia, e os Dewey's sit-ins em Filadélfia, onde adolescentes e ativistas protestaram contra a discriminação num restaurante. Em 1966, houve protestos contra a discriminação em bares e a primeira manifestação de orgulho do mundo. A violência policial em Los Angeles em 1966/67 e a celebração do Dia de São Patrício por drag queens em 1968 também são mencionadas. O artigo encerra destacando a importância desses eventos na luta contínua pelos direitos LGBTQIA+.
Membros do Council of Religion and the Homosexual
1964: Randy Wicker e o Primeiro Protesto
Em 1964, a repressão institucionalizada ainda era a norma, mas surgiam os primeiros sinais de resistência organizada.Randy Wicker liderou uma manifestação pioneira, marcando o início de uma luta pública pelos direitos da comunidade LGBTQIA+.
Randy (Randolph) Wicker (1938 — ) foi um ativista e autor estadounidense envolvido na defesa dos direitos das pessoas LGBTQIA+ desde meados da década de 1950. Em 1964, Nova Iorque foi palco daquela que é frequentemente referenciada como a 1.ª manifestação pela defesa dos direitos humanos das pessoas cuir e foi Wicker quem esteve na sua origem. A manifestação decorreu no seguimento da quebra de confidencialidade de dados relativos a homens gay por parte de um centro de recrutamento do exército dos EUA.
Fotografia do piquete em frente ao centro de recrutamento do Exército dos EUA, considerado o primeiro protesto público pelos direitos LGBTQIA+ nos EUA. Da direita para a esquerda, Randy Wicker, Craig Rodwell, Nancy Garden, Renee Cafiero e Jack Dieter no protesto de 19 de setembro de 1964 (NYC LGBT Historic Sites Project)
Nesse mesmo ano, e também em Nova Iorque, quatro membros da comunidade LGBTQIA+ irromperam numa conferência de um psicanalista que defendia que a homossexualidade era uma doença mental.
1965: Da Catedral à Dewey's — Crescem os Protestos
O ano de 1965 testemunhou uma intensificação dos protestos, desde confrontos em eventos religiosos até manifestações em espaços públicos. A comunidade LGBTQIA+ começava a articular-se de forma mais visível e determinada.
Em 1965, surgiram sete ações de protesto. A primeira teve lugar em São Francisco, onde o Council of Religion and the Homosexual, formado por metodistas, luteranos e episcopalianos, organizou um baile de máscaras para angariação de fundos. Os membros do Conselho, como bons cristãos, pediram autorização à polícia, informando-a do local, data e hora do baile. No entanto, no momento do evento, a polícia apareceu para impedir a sua realização e deteve vários dos sacerdotes responsáveis pela organização.
O evento acabou numa luta entre os membros do Conselho e a polícia. No seguimento destas detenções, que não ocorreram sem consequências penais, seguiu-se uma manifestação na catedral, em apoio a um dos reverendos condenados devido ao suporte que este prestava à comunidade cuir.
Meses mais tarde, no início do mês de abril desse mesmo ano de 1965, em Washington DC e em Nova Iorque, houve protestos em frente à Casa Branca e em frente à sede das Nações Unidas, para contestar as políticas homofóbicas de Cuba, que enviava os homossexuais para campos de trabalho, e também pelas políticas discriminatórias dos próprios EUA, consideradas piores do que as de Cuba, da Rússia e de outros países que os EUA desprezavam.
Dewey's Sit-ins: Resistência Juvenil e Organização
Os protestos no restaurante Dewey's, em Filadélfia, destacaram a coragem dos jovens LGBTQIA+. Enfrentando a discriminação, organizaram-se e resistiram, demonstrando a força e a resiliência da juventude queer.
No dia 25 de abril de 1965, os protestos ocorreram em Filadélfia (Pensilvânia) e ficaram conhecidos como os Dewey’s sit-ins, uma cadeia de restaurantes de hambúrgueres localizada na área metropolitana de Filadélfia. O primeiro Dewey's abriu em meados da década de 1930 em Atlantic City, e a cadeia, originalmente propriedade de Louis Yesner (1894-1979), acabou por crescer para quinze restaurantes. Dois desses locais – um na 208 S. Thirteenth Street e outro na 219 S. Seventeenth Street, em Filadélfia – tornaram-se locais de encontro para pessoas LGBTQIA+ na década de 1960. A manifestação a que aqui nos referimos, teve lugar no Dewey's da Seventeenth Street. Em resposta à frequência do local por grupo de adolescentes cuir, a gerência do Dewey's deu instruções ao pessoal para lhes recusar o serviço. Os empregados interpretaram esta instrução de forma generalizada, recusando o serviço a qualquer cliente que parecesse ser gay ou lésbica ou que desafiasse as convenções de género hegemónicas. A 25 de abril de 1965, no Dewey's da Seventeenth Street, foi recusado o serviço a 150 pessoas, incluindo homossexuais, mulheres masculinizadas, homens efeminados e pessoas que usavam roupas pouco convencionais e outros membros da comunidade cuir.
Manifestantes em frente ao restaurante Dewey’s, protestando contra a discriminação (OutHistory).
Os adolescentes juntaram forças com a Janus Society, uma organização local de defesa dos direitos da comunidade cuir, para protestar contra esta política. A gestão do restaurante chamou a polícia e três adolescentes e o presidente da Janus Society, Clark Polak, foram detidos e considerados culpados de perturbação da ordem pública. Após as detenções, os ativistas da Janus Society protestaram em frente ao restaurante e distribuíram 1.500 panfletos a denunciar a política discriminatória da gerência. O protesto durou cinco dias e houve novamente conflitos entre os manifestantes e o restaurante, mas desta vez a polícia decidiu não intervir. A 2 de maio de 1965, teve lugar outra manifestação. Embora a polícia estivesse presente, não se realizaram detenções e, subsequentemente, a Dewey's suspendeu a sua política de recusar o serviço a pessoas que parecessem homossexuais ou melhor, a pessoas LGBTQIA+.
1966: Bares, Bebidas e Discriminação
A discriminação nos bares de Nova Iorque levou a comunidade a organizar protestos inovadores, como os “sip-ins”, desafiando as políticas que os excluíam dos espaços públicos. Estas ações marcaram um novo capítulo na luta por direitos civis.
Entretanto, em Nova Iorque, a repressão contra a comunidade cuir ganhava novos contornos. As autoridades, em particular a Autoridade Estatal de Controlo de Bebidas Alcoólicas e o Departamento de Polícia, estavam empenhadas numa cruzada sistemática para fechar bares e espaços de convívio onde se reunissem pessoas não heterossexuais e não cisgénero. A venda de álcool a clientes queer era considerada, na prática, uma violação da “ordem pública”. Bares eram encerrados, licenças retiradas, clientes detidos. Não se tratava apenas de negar o direito a uma bebida, mas de reprimir a própria possibilidade de existência social e comunitária das pessoas LGBTQIA+.
Face a esta hostilidade institucionalizada, um grupo de ativistas da Mattachine Society decidiu, em 1966, transformar o quotidiano em protesto político. Inspirando-se nos “sit-ins” do movimento negro pelos direitos civis — em que jovens afro-americanos ocupavam, pacificamente, restaurantes e balcões segregados no Sul dos EUA —, conceberam uma ação a que chamaram “sip-in”: uma ocupação pacífica de bares, mas com copos em vez de pratos, onde o ato de pedir uma bebida se tornava uma declaração de identidade e resistência.
O protesto do “Sip-In” no bar Julius’, em Greenwich Village, a 21 de abril de 1966, foi liderado por Dick Leitsch (olhando fixamente para o barman), presidente da Mattachine Society de Nova Iorque, juntamente com três outros ativistas da organização. Da esquerda para a direita: John Timmins (virado para fora da câmara), Dick Leitsch, Craig Rodwell e Randy Wicker. A fotografia capta o momento em que o barman recusou servi-los, depois de os quatro anunciarem que eram homossexuais. (Foto de Fred W. McDarrah).
Dick Leitsch, Craig Rodwell e John Timmons, três ativistas abertamente homossexuais, deram início ao plano: acompanhados por jornalistas, visitaram uma série de bares nova-iorquinos, declararam a sua orientação sexual e pediram para ser servidos. Nos três primeiros estabelecimentos, bastou afirmarem “somos homossexuais” para que lhes recusassem qualquer bebida. No quarto bar, foi-lhes negado todo e qualquer serviço, mesmo antes de formularem o pedido.
Este gesto — simples, quotidiano, quase banal — expôs publicamente o caráter estrutural da discriminação. Os ativistas apresentaram uma queixa à Autoridade Estatal de Controlo de Bebidas Alcoólicas, que se recusou a intervir, legitimando, de facto, a exclusão. Mas a ação teve repercussão mediática suficiente para pressionar a Comissão de Direitos Humanos da cidade de Nova Iorque, que viria a declarar que a recusa de serviço com base na orientação sexual era ilegal e não poderia ser tolerada.
Os “sip-ins” foram um dos primeiros exemplos de protesto queer com impacto institucional tangível. Demonstraram que a luta pelo direito à existência começava em gestos tão básicos como pedir um copo ao balcão. Ao desafiar as normas de respeitabilidade impostas pelo Estado e pela cultura dominante, estas ações colocaram o prazer, a visibilidade e a presença no centro da resistência. Numa época em que sair à rua de mãos dadas ou usar um vestido podia significar uma prisão, ocupar um bar como pessoa assumidamente queer era, sem dúvida, um ato revolucionário.
1966: A primeira manifestação de orgulho do mundo
Em 1966, diversas cidades dos EUA foram palco de manifestações simultâneas, protestando contra a exclusão das pessoas LGBTQIA+ das Forças Armadas. Estas ações coordenadas representaram um passo significativo na afirmação pública da comunidade.
Organizada por diversas associações de apoio ao coletivo LGBTQIA+ em diferentes cidades: Nova Iorque, Filadélfia, São Francisco e Washington D.C., no dia 21 de maio de 1966, constituíram-se diversas manifestações simultâneas em todas estas cidades, para protestar contra a exclusão das pessoas cuir das Forças Armadas estado-unidenses. A comunidade cuir aproveitou o dia das Forças Armadas para se mobilizarem. Em Los Angeles organizaram-se numa parada com 15 veículos, enquanto nas outras cidades se marchou a pé. Esta iniciativa partiu da NACHO — North American Conference of Homophile Organizations, fundada em 1966, que surgiu a partir da ECHO — East Coast Homophile Organizations (fundada três anos antes).
1966/67: Violência Policial e Alianças Contraculturais
Na virada do ano, a brutalidade policial em Los Angeles provocou uma reação imediata da comunidade, que se manifestou espontaneamente contra a repressão. Este episódio evidenciou a crescente disposição para resistir abertamente à violência institucional.
Na noite de Ano Novo de 1966/67 a Polícia de Los Angeles (LAPD) fez uma rusga brutal às festas de Passagem de Ano em dois bares cuir, o Black Cat Tavern e o New Faces. Vários clientes ficaram feridos e um barman foi hospitalizado com uma fratura no crânio.
Manifestação contra a violência policial após a rusga no bar Black Cat Tavern. (Los Angeles Times)
Algumas horas depois, no dia 1 de janeiro algumas centenas de pessoas manifestaram-se espontaneamente na Sunset Boulevard e fizeram piquetes em frente ao Black Cat Tavern. Esta concentração voltou a repetir-se, desta vez em parceria com a comunidade hippie e outros grupos contracultura, que também eram alvo de perseguições policias.
1968: Drag Queens e Celebração como Protesto
Em 1968, drag queens organizaram uma celebração no Griffith Park, transformando um espaço frequentemente alvo de repressão num local de afirmação e resistência. Este evento destacou a importância da celebração como forma de protesto.
No dia 17 de março de 1968, duas drag queens conhecidas como The Princess e The Duchess organizaram uma festa comemorativa do Dia de São Patrício no Griffith Park, um local popular para encontros e frequentemente alvo de ações policiais. Mais de 200 homens gay juntaram-se e celebraram durante todo o dia.
No próximo artigo desta série, retomarei os acontecimentos de 1969 em Nova Iorque, no bar Stonewall Inn em Greenwich Village.
Nota Final
Os acontecimentos aqui relatados encontram-se amplamente documentados, nomeadamente no livro Stonewall: The Riots that Sparked the Gay Revolution, de David Carter (2010, 1.ª ed. 2004), que foi a principal fonte para este artigo. A obra de Carter também inspirou o documentário Stonewall Uprising da série American Experience (2010).
Outra fonte fundamental foi a antologia The Stonewall Reader (Penguin Classics, 2019), organizada pela New York Public Library por ocasião dos 50 anos da Revolta de Stonewall.
Consultei também os artigos:
In Memoriam — Farewell Dick Leitsch
e LGBTQ stories: The “Sip-In” paved the way for gay rights
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[Atualizado em 2025-05-28]
Por Orlando Figueiredo, desde as margens.
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