Do pós-guerra a Stonewall – Parte II: A Ordem Executiva 10450

Da institucionalização à normalização da queerfoboia


Neste segundo artigo abordo as consequências de uma lei homofóbica e transfóbica, emitida pelo presidente Eisenhower em 1953, cujas repercussões se fazem sentir até aos nossos dias. Mais uma tentativa de melhor compreender os contextos socio-políticos estado-unidenses que antecederam os acontecimentos de Stonewall.


A OE 10450

Em janeiro de 1953 McCarthy completava o seu primeiro mandato [1] como senador por Wisconsin e levava três anos de implementação efetiva da perseguição às pessoas LGBTQ+. Desde a sua em 1947, McCarthy teve pouca notoriedade enquanto senador. Foi em 1950 que se tornou famoso, quando afirmou ter uma lista de funcionários do departamento de estado que eram espiões comunistas. Na sequência dessa afirmação, iniciou-se, simultaneamente, a perseguição quimérica aos comunistas e às pessoas LGBTQ+ que referi na Parte I desta série de artigos. Também nesse artigo, refiro que

em 1952, Dirksen afirmou que a vitória dos republicanos era a garantia da remoção dos lavender lads do departamento de estado.

Eisenhower não demoreu a dar razão a Dirksen e a 27 de abril de 1953 emitiu a OE 10450 que entrou em vigor um mês depois, a 27 de maio. Esta lei estabelecia os padrões de segurança para o emprego federal e proibiu, literalmente, os homossexuais de trabalhar nas instituições do governo federal [2]. Em consequência, milhares de pessoas perderam os seus empregos.

O presidente não se limitou ao âmbito dos postos de trabalho no departamento de estado. O então presidente ampliou as políticas e procedimentos homofóbicos e transfóbicos de forma a incluir também as agências federais e as instituições privadas que tivessem contratos governamentais. No total, entre funcionários do departamento de estado, pessoal das forças armadas e privados, foram afetadas mais de 6 milhões de pessoas em todo o país. Para a comunidade LGBTQ+ as consequências foram devastadoras. Estima-se que entre 5 000 a 10 000 pessoas LGBTQ+ perderam o seu emprego – incluindo pessoal do departamento de estado, militares e privados que trabalhavam em empresas com relações contratuais com o departamento de estado – simplesmente por serem homossexuais.

Contudo, a calamidade não se ficou pela mera perda do posto de trabalho. A maior parte destas pessoas foram expostas publicamente – literalmente sujeitas a saídas forçadas do armário – como gays ou lésbicas a uma sociedade que as ostracizava e rejeitava. As consequências foram trágicas e os suicídios entre a comuidade LGBTQ+ aumentou consideravelmente.

O livro Lavender Scare – The Cold War Persecution of Gays and Lesbians in the Federal Government, que teve uma edição revista que saiu no dia 23 de março (1.ª edição datada de 2004) e o documentário The Lavender Scare (2017) são excelentes documentos que descrevem este período trágico da nossa história.

Repercussões e Consequências da OE 10450

Por meados da década de 50, as medidas preconizadas na OE 10450 tinham sido adotadas pelos governos estaduais e autoridades locais e passadas a lei. A proibição de contratação de pessoas suspeitas de “perversão sexual” acabou por afetar mais de 12 milhões de pessoas, o que correspondia, na época, a mais de 20% da força laboral dos EUA. Os juramentos atestadores da “pureza moral” dos trabalhadores passaram a ser compulsórios para que estes conseguissem manter ou arranjar um posto de trabalho.

Durante os anos 50 e 60, o FBI e os departamentos e agências das policias de estado dos EUA elaboraram bases de dados de homossexuais conhecidos. Os registos incluíam os nomes das pessoas, locais que estas frequentavam, suas amizades e outros dados sobre a sua vida privada que fossem arbitrariamente considerados relevantes. Os serviços postais dos EUA mantinham uma base de dados com os endereços para onde era enviada correspondência relacionada com a homossexualidade. Os governos estaduais e as autoridades locais não só colaboraram com as políticas federais, como implementaram medidas persecutórias idênticas.

Foi proibida a venda de bebidas alcoólicas a pessoas LGBTQ+. Os bares gay que infringiam essa norma perdiam a licença e eram encerrados. Os clientes eram presos e expostos publicamente pela imprensa – como sempre, coming outs forçados é sinónimo de vidas destruídas entre a comnidade LGBTQ+. Fizeram-se campanhas, orquestradas pelas autoridades locais, que visavam limpar os bares, praias e parques de homossexuais e restantes membros da comunidade LGBTQ+. Proibiu-se o uso de roupas que consideravam ser do género oposto ao que era atribuído à pessoa na sua identificação – a lei obrigava ao uso de pelo menos três peças de roupa adequadas ao género descrito na sua identificação – ridículo...

Nas universidades, professores suspeitos de serem homossexuais foram expulsos. Milhares de gays, lésbicas e pessoas transgénero foram publicamente humilhadas, acossadas, despedidas, encarceradas ou internadas em hospitais psiquiátricos. Às pessoas LGBTQ+ não lhes restava outra opção a não ser a de levarem uma existência dupla, em que as suas vidas privadas tinham de ser vividas na clandestinidade e longe dos olhares públicos e das suas vidas profissionais.

A revogação da OE 10450

A sociedade estado-unidense não exerceu nenhuma pressão sobre as instituições federais e estatais para acabar com esta situação. Pelo contrário, a institucionalização da homofobia levou à sua normalização no contexto social, bem na tradição dos EUA.

Até 1975, durante 22 anos, além de umas poucas e infrutíferas ações judiciais a OE 10450 continuou a excluir pessoas LGBTQ+ em todos os departamentos e agências estaduais e em empresas privadas com contratos com o departamento de estado. O incentivo aos governos estaduais e às autoridades locais para iplementarem políticas idênticas era a norma. O principal efeito da homofobia institucionalizada foi a sua normalização. Só em 1975 é que aU.S. Civil Service Commission, uma comissão destinada a avaliar os funcionários do departamento de estado pelo seu mérito, acabou com a exclusão de pessoas gays e lésbicas dos serviços federais civis e em 1977 o departamento de estado acabou com a segregação de pessoas gays e lésbicas dos serviços estrangeiros. Porém, as pessoas LGBTQ+ continuaram banidas de outros contextos, como as Forças Armadas. As políticas Don’t Ask, Don’t Tell (DADT), numa tentativa de resolver o “problema” das pessoas LGBTQ+ das forças armadas, foram implementadas por Bill Clinton em dezembro de 1993 e entraram em vigor em fevereiro de 1994. Estas políticas visaram acabar com a exclusão de pessoas LGBTQ+ das forças armadas, impediam os membros homossexuais e bisexuais das forças armadas estado-unidenses de revelar a sua orientação sexual, empurrando-os para o interior de um armário depressivo e dolorso.

Só em 1995, 42 anos depois da assinatura por Eisenhower da OE 10450, é que Bill Clinton assinou a OE 12968 que diz, explicitamente, que

O Governo dos Estados Unidos não discrimina com base na raça, cor, religião, sexo, origem nacional, incapacidade, ou orientação sexual a concessão de acesso a informações classificadas.

Porém, como as políticas (DADT) as pessoas LGBTQ+ das forças armadas estado -unidenses eram obrigadas a continuar armariadas e a levar uma vida dupla, obrigando-as a esconder a sua orientação homo ou bisexual e a manter sua vida amorosa separada e escondida da sua vida profissional, os resultados práticos foram poucos.

Três anos depois, em 1998, também pela mão de Bill Clinton, a OE 13087 repele o uso de linguagem relativa à orientação sexual dos funcionários constantes da OE 10450 que continua em vigor. Mas foi apenas no dia 17 de janeiro de 2017, 64 anos depois de entrar em vigor, que a OE 10450 foi explicita e formalmente revogada pele OE 13764, a última OE assinada pelo Presidente Barack Obama durante o seu segundo mandato. Foram 64 anos de perseguição institucionalizada pelo departamento de estado norte americano às pessoas LGBTQ+. Imagine-se as consequências para a comunidade.

No próximo artigo irei apresentar duas revoltas da comunidade LGBTQ+ que antecederam a revolta de Stonewall Inn. Fiquem atentes.


[1] No EUA os mandatos de senador têm a duração de dois anos. Em 1953, McCarthy foi eleito para um segundo mandato que não chegou a completar, pois morreu no dia 2 de maio de 1947 na sequência de uma hepatite aguda.

[2] Na Sec. 8. a) estabelece os critérios de empregabilidade e no parágrafo (iii) desta secção foi incluido o termo sexual perversion que, à época, estava também associado à homossexualidade. A lei pode ser consultada aqui (em inglês).

Leituras adicionais:

Executive Order 10450: Eisenhower and the Lavender Scare

Milestones in the American Gay Rights Movement (American Experience)


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Por Orlando Figueiredo, desde as margens.
queerlab@kuircuir.pt


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