Do pós-guerra a Stonewall – Parte III: Duas revoltas LGBTQIA+ que antecederam Stonewall
Dois motins que antecederam Stonewall
Neste terceiro artigo, da série Do pós-guerra a Stonewall, abordo dois dos mais importantes motins que antecederam a revolta de Stonewall Inn, no ano de 1969, em Nova Iorque. São duas as revoltas que tiveram lugar em cafetarias frequentadas por pessoas LGBTQIA+. A primeira, a revolta de Cooper Do-nuts, aconteceu em maio de 1959, no centro de Los Angeles, Califórnia e foi uma das primeiras revoltas conhecidas lideradas por pessoas LGBTQIA+ contra a opressão policial. A segunda, a revolta de Gene Compton's Cafeteria, aconteceu em agosto de 1966 no bairro de Tenderloin, em São Francisco, Califórnia. Antes, porém, irei apresentar uma breve síntese do contexto socio-político, que envolveu a implementção de um conjunto de medidas repressivas e discriminatórias das pessoas LGBTQIA+, dos EUA, que esteve na origem destas e doutras revoltas.
Os motins cuir de Cooper Donuts, em Los Angelea, deram o mote à revolta LGBTQIA+ 10 anos antes de Stonewall
Contexto
Durante os anos 50 e 60, o FBI e os departamentos e agências das policias de estado dos EUA elaboraram bases de dados de pessoas homossexuais. Os registos incluíam os nomes destas pessoas, sua residencia , locais que frequentavam, amizades e outros dados sobre a sua vida privada que fossem arbitrariamente considerados relevantes. Os serviços postais dos EUA mantinham uma base de dados com os endereços para onde era enviada correspondência relacionada com a homossexualidade. Como já foi referido em artigos anteriores, os governos estaduais e as autoridades locais não só colaboraram, como implementaram medidas persecutórias das pessoas LGBTQIA+ agravando e normalizando a violação dos seus direitos fundamentais.
Ainda no mesmo contexto persecutório, foi proibida a venda de bebidas alcoólicas a pessoas queer. Os bares gay que infringiam essa norma, porque serviam homossexuais, perdiam a licença, eram encerrados e os clientes presos e expostos publicamente pela imprensa – novos coming outs forçados, novas vidas destruídas. Fizeram-se campanhas, orquestradas pelas autoridades locais e estaduais, que visavam limpar os lendários bares, praias e parques dos homossexuais. Proibiu-se o uso de roupas que se consideravam ser do género oposto ao que era atribuído à pessoa na sua identificação legal – a lei obrigava ao uso de pelo menos três peças de roupa adequadas ao género descrito na sua identificação – ridículo...
Nas universidades, professores suspeitos de serem homossexuais eram expulsos. Milhares de gays, lésbicas e pessoas transgénero foram publicamente humilhadas, acossadas, despedidas, encarceradas ou internadas em hospitais psiquiátricos. Às pessoas LGBTQIA+ não lhes restava outra opção senão a de levarem uma vida dupla, em que as suas vidas privadas tinham de ser vividas na clandestinidade, longe dos olhares e do conhecimento público e das suas vidas profissionais.
Os bares
As grandes cidades, como afirma Didier Eribon no seu livro Réflexions sur la question gay(1999), são desde sempre o habitat natural das pessoas LGBTQIA+. O anonimato e a aglomeração de uma população que foge dos meios pequenos onde, não só é difícil encontrar outras pessoas LGBTQIA+, mas também a discriminação e a ostracização se fazem sentir com mais intensidade, traz os homossexuais para os centros urbanos. E os anos 50 e 60 do século XX, com todas as dificuldades que colocaram às pessoas queer, não foram exceção. Na época, mesmo nas grandes cidades, a população LGBTQIA+ não tinha outra opção se não a de se reunir em certos bairros urbanos, tidos por serem mais ou menos seguros.
Em Nova Iorque a concentração de pessoas LGBTQIA+ fez-se no bairro de Greenwich Village. Tal aglomeração deu origem a uma revolução cultural a que não foi estranho o movimento Beatnik. Apesar de, em Nova Iorquem, haver uma grande população LGBTQIA+, não existiam muitos lugares, para além dos bares, onde a comunidade se pudesse reunir abertamente sem ser acossada, molestada ou mesmo presa pelas autoridades. No início dos anos 60 está em pleno apogeu uma campanha para “limpar” a cidade de Nova Iorque de bares gay. A pressão dos governos estadual e local causou grande pressão sobre os bares, que eram, na sua maioria, ilegais. Nenhum dos bares frequentados pela comunidade queer de Greenwich Village (ou da cidade de Nova Iorque) eram propriedade de elementos da comunidade. Quase todos estavam na posse da máfia italiana que, obviamente, maltratava e menosprezava os seus clientes habituais, adulterando as bebidas e cobrando preços exorbitantes por estas. Além disso, os acordos ilegais com a polícia, que visavam evitar buscas demasiado frequentes, eram a regra. Ainda assim, e no que diz respeito aos clientes LGBTQIA+, a polícia fazia o que lhe apetecia. Um destes bares era o Stonewall Inn, localizado entre os números 51 e 53 da Christopher street. Tal como muitos outros estabelecimentos da cidade, o Stonewall Inn era propriedade da máfia genovesa. Em novembro de 1966 três membros desta família mafiosa investiram 3.000 dólares para converter Stonewall Inn num bar frequentado por travestis, homossexuais e pessoas transgénero. Desta forma asseguravam que os clientes, eles próprios discriminados e perseguidos pela polícia, não iriam denunciar as deploráveis condições do local.
Apesar dos subornos, a polícia tinha de manter as aparências e as rusgas a estes bares eram frequentes. Ocorriam, quase sempre, uma vez por mês em cada bar. Porém, os bares estavam preparados para qualquer contingência. As bebidas podiam ser armazenadas em compartimentos secretos ou em veículos estacionados à sua porta. Assim, mesmo depois de um possível arresto do álcool, o negócio poderia prosseguir depois da rusga. Os subornos não visavam evitar as rusgas, mas implesmente proteger os interesses dos donos dos bares. As rusgas mantinham-se, por interesse da polícia em manter as aparências. Os donos e gerentes dos bares eram alertados com antecedência do dia e hora em que a rusga ao seu bar iria acontecer. Estas ocorriam suficientemente cedo para que o negócio não fosse significativamente prejudicado e pudesse prosseguir pela noite dentro. Desta forma, os interesses dos donos dos bares e da polícia eram garantidos à custa da violação dos direitos das pessoas queer que os frequentavem. Numa rusga típica, acendiam-se as luzes dos bares. Os clientes, na sua grande maioria já familiarizados com o procedimento, colocavam-se em fila e os seus documentos de identidade eram revistos pela polícia. Aqueles que não tinham documentos de identidade ou trajavam roupas tidas por serem do género oposto, eram presos. Os outros eram deixados em liberdade. Alguns dos homossexuais, travestis e pessoas transgénero, usavam os seus cartões de militares como documentos de identificação, o que era sempre uma surpesa para a polícia. As mulheres transgénero, que não usassem, no mínimo, três peças de roupa masculina, eram presas. Ainda que com menos frequência, a polícia também procedia à detenção dos funcionários e gerentes dos bares.
Durante as semanas que antecederam o motim de Stonewall, no sábado 28 de junho de 1969, a polícia havia efetuado rusgas frequentes nos bares da zona. Stonewall Inn tinha sido sujeito a uma rusga na terça-feira anterior ao dia da revolta e dois outros clubes de Greenwich Village tinham sido encerrados pelas autoridades. Ainda que o motim de Stonewall, seja frequentemente tido como o início do movimento de libertação gay/LGBTQIA+/cuir moderno, houve várias outras manifestações de resistência civil que tiveram lugar antes dessa data.
O motim de Cooper Do-nuts [1]
O Cooper Do-nuts era um café da Main Street, no bairro de Skid Rowm, no centro de Los Angeles. Aberto 24 horas, o estabelecimento comercial encontrava-se entre dois bares queer, o Harod’s e o Waldorf. A sua clientela incluia uma larga quota de pessoas LGBTQIA+, em particular gays e pessoas transgénero que frequentavam os bares vizinhos. De um modo geral, as pessoas cuir eram bem-vindas ao estabelecimento comercial.
Pessoas cuir na CooperDonuts, Los Angeles
Tal como já foi referido, nessa época, a lei obrigava a que as pessoas usassem, no mínimo, três peças de roupa tidas por serem adequadas ao género afixado nos seus documentos de identificação. Numa noite de maio de 1959, dez anos antes da revolta de Stonewall, dois policiais entraram no café e pediram a identificação de vários clientes emtre os quais se encontravam mulheres trans que violavam os requisitos legais relativos à vestimenta. Esta era uma forma comum de atuação de polícia na época. Os policiais tentaram prender duas Drag Queens, dois trabalhadores do sexo e um homossexual masculino. Uma das pessoas feita prisioneira, protestou, veementemente, pela falta de espaço no carro da polícia. As pessoas à volta, cansadas da perseguição e da discriminação, começaram a atacar a polícia com o que tinham à mão. Lixo, chávenas, café e até donuts foram arremessados à polícia que acabou por se pôr em fuga sem prender uma única pessoa.
A oportunidade foi aproveitada e os protestos nas ruas de Los Angeles ganharam momento. Rapidamente a resposta violenta e selvagem da polícia se fez sentir. As ruas foram bloqueadas durante toda a noite e várias pessoas foram presas.
Imagem de um Cooper Do-nuts Cafe em LA que se pensa ser aquele onde começou a primeira revolta LGBTQIA+ dos EUA. A fotografia é retirada do filme “The Exiles” de Kent Mackenzie de 1961.
Entre as pessoas que se encontravam na cafetaria Cooper Do-nuts na noite dos acontecimentos, conta-se o escritor e romancista americano, de origem mexicana, John Rechy. No seu romance, City of Night, publicado em 1963, Rechy descreve o ambiente que se vivia na noite de LA na época dos acontecimentos.
Os motins LGBTQIA+ de Cooper Donuts, Los Angeles, 1959
O motim da Compton’s Cafeteria [2]
Tido como a primeira revolta de pessoas transgénero que teve lugar nos EUA, o motim da Compton’s Cafeteria ocorre numa noite quente de agosto de 1966, três anos antes dos acontecimentos de Stonewall, no bairro de Tenderloin, em São Francisco.
A Compton's Cafeteria estava aberta e servia a sua clientela habitual que, entre outros, incluía trabalhadores do sexo e pessoas transgénero. Esta lugar era um dos poucos onde as pessoas trans se podiam reunir com alguma tranquilidade, dado que estas não era bem-vindas a bares gay frequentados por pessoas cisgénero. Na época, o travestismo era ilegal e a polícia usava as pessoas trans como pretexto para rusgas em bares gay, o que, frequentemente, culminava com o encerramento do local.
Nos meses que antecederam o motim, uma associação de defesa dos direitos LGBTQIA+, a Vanguard, começou a reunir na cafetaria de Gene Compton. O gerente queixava-se que eles passavam demasiado tempo sentados nas mesas e consumiam muito pouco, o que prejudicava o negócio. Na noite do motim, o gerente da cafetaria, aborrecido com algum barulho proveniente de uma mesa onde se encontravam pessoas transgénero, chamou a polícia. As forças policiais brindavam, frequentemente, as pessoas transgénero com maus-tratos e abusos, e essa noite não foi exceção. Quando um polícia mal-humorado tentou prender uma das pessoas trans sentada na mesa, esta pegou na chávena de café e arremessou o seu conteúdo à cara do polícia. Estava dado o mote e iniciada a revolta. À polícia foram arremessados todos os objetos que estavam à mão: cadeiras, mesas, chávenas, pratos, açucareiros... os vidros das janelas foram estilhaçados e a confusão foi geral. A polícia viu-se obrigada a pedir reforços e o motim passou para a rua. Transeuntes LGBTQIA+ e aliados juntaram-se ao motim, e várias viaturas policiais ficaram com os vidros partidos.
A Cafetaria Gene Compton's
No dia seguinte a gestão da cafetaria não deixou que pessoas transgénero frequentassem o lugar, mas isso não foi impedimento para as manifestações de desagrado. O ajuntamento fez-se na rua, em frente à cafetaria, e os protestos prosseguiram.
Depois do motim da Compton’s Cafeteria surgiu uma rede de apoio social, psicológico e médico a pessoas trans que culminou, em 1968, com o nascimento da National Transsexual Counseling Unit (NTCU), a primeira organização de apoio e defesa dos direitos humanos de pessoas transgénero em todo o mundo.
Os episódios que acabámos de apresentar são apenas dois exemplos de motins que antecederam e pavimentaram o caminho para Stonewall. Porém, existem mais de 20 casos de motins e revoltas registados que vão desde Nova Iorque a Filadélfia, de Chicago a São Francisco, de Los Angeles a Washington D.C. O cansaço das pessoas LGBTQIA+ em função da discriminação, segregação e humilhação a que estavam sujeitas foram o mote para que estes episódios se espalhassem um pouco por todos os E.U.A. e as pessoas queer se associassem para defender os seus direitos. No próximo artigo irei abordar, ainda que sumariamente, algins dos mais de 20 motins ocorridos antes da revolta de Stonewall Inn. Mantenham-se atentes.
Durante ops motins de 1966, em Los Angeles.
Em janeiro de 2006 foi colocada uma placa comemorativa a assinalar o 40.º aniversário do motim.
Nesse San Diego junta-se a São Francisco e ao condado de Santa Clara, no Silicon VaLley, na declaração de Agosto como Mês da História Transgénero.
Placa comemorativa dos 40 anos dos motins a Cafetaria Compton.
[1] Os acontecimentos que ocorrerram na cidade de LA em maio de 1959 estão documentados por Lillian Faderman e Stuart Timmons na obra Gay L.A.: A History of Sexual Outlaws, Power Politics, and Lipstick Lesbians, publicada em 2009 pela University of California Press. No entanto, a veracidade desta história foi questionada pelo blogger Nathan Marsak, residente em L.A., em cinco artigos publicados no seu blog com o cabeçalho We Need to Talk About Cooper Do-Nuts - Part I, Part II, Part III, Part IV e Part V.
[2 ] O documentário Screaming Queens: The Riot at Compton's Cafeteria (2005) traça um retrato fiel e pertinente da revolta LGBTQIA+ ocorrida em agosto de 1966 na Gene Compton’s Cafeteria. Algumas filmagens da época apresentadas no documentário apresentam linguagem homofóbica e transfóbica, nomeadamente em notícias sobre as pessoas que frequentavam Tenderloin na época.
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Por Orlando Figueiredo, desde as margens.
queerlab@kuircuir.pt
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