Entre conquistas e exclusões: um olhar crítico sobre as continuidades da violência, a luta trans e o contexto português
Nesta oitava e última parte, prosseguimos pelos caminhos sinuosos da resistência cuir. Partindo da efervescência social dos anos 70 e das fraturas internas no seio do movimento LGBTQIA+, abordamos o impacto da homofobia institucional e social que se prolonga até hoje. Revisita-se o surgimento dos primeiros coletivos em Portugal, a resistência à homonormatividade e a contínua luta contra as violências quotidianas e os crimes de ódio. Se nas partes anteriores explorámos o apagamento (Parte I e II), os ecos de resistência (Parte III e IV), a noite fundadora de Stonewall (Parte V), a manipulação mediática (Parte VI) e as tensões internas (Parte VII), aqui confrontamos a ilusão da chegada, reafirmando que os direitos não são um ponto de chegada, mas um campo em permanente disputa.
Revoluções: Conquistas e Fraturas no Pós-Stonewall
O pós-Stonewall trouxe vitórias visíveis, mas também divisões internas que expuseram exclusões e tensões que continuam a atravessar a comunidade LGBTQIA+.
Como os artigos anteriores atestam, o ativismo LGBTI não surgiu do nada. Inseriu-se num contexto de efervescência social nos Estados Unidos, influenciado por movimentos pacifistas contra a guerra do Vietname, pelo Black Panther Party for Self-Defense, por movimentos feministas, pelo movimento hippie e pelas mobilizações estudantis. Todas essas correntes convergiram num movimento progressista de grande amplitude.
A resistência, contudo, não tardou a manifestar-se, tanto por parte do poder instituído como de figuras publicamente homofóbicas, como Anita Bryant — uma cristã fundamentalista que defendia abertamente a exclusão de conteúdos sobre homossexualidade das escolas. Trata-se, aliás, de uma antecessora ideológica de algumas figuras políticas atuais que promovem políticas de censura e apagamento da diversidade, como o Moms for Liberty, Movimento de base nos EUA, composto maioritariamente por mães conservadoras, que advoga contra a inclusão LGBTQIA+ nas escolas, especialmente no currículo, frequentemente sob o pretexto de proteger as crianças — uma tática diretamente herdada da campanha Save Our Children de Bryant.
À medida que o movimento crescia, começaram a surgir divisões internas. Em 1973, na Marcha do Orgulho de Nova Iorque, a ativista feminista Jean O'Leary acusou o coletivo trans* e drag de comportamentos hostis para com as lésbicas. Sylvia Rivera, uma das líderes trans* da revolta de Stonewall, respondeu energicamente, recordando que foram as drag queens que arriscaram as suas vidas naquela fatídica noite. A tensão entre sectores do próprio movimento revelou uma crescente transfobia e exclusão de identidades não normativas. Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson, fundadoras da organização STAR — Street Transvestite Action Revolutionaries —, continuaram a luta em prol das pessoas trans* e sem-abrigo. Anos mais tarde, Jean O’Leary reconheceria que a sua atitude havia sido errada, descrevendo-a como horrível e questionando como pôde excluir as pessoas trans* enquanto, ao mesmo tempo, criticava as feministas que excluíam as lésbicas.
Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera durante o Christopher Street Liberation Day de 1973, em Nova York
Da homonormatividade à libertação radical: confrontos internos e externos na luta pelos direitos cuir – Fraturas na unidade LGBTQIA+ pós-Stonewall
Ao longo desta série, percorremos os caminhos sinuosos da resistência LGBTQIA+: da ameaça lavanda e dos silêncios institucionais (Parte I e II), às revoltas antes de Stonewall (Parte III e IV), ao grito de libertação de Stonewall (Parte V) e ao apagamento político e mediático que se seguiu (Parte VI). Nesta Parte VII, entramos no campo das tensões internas: as disputas entre estratégias de assimilação e visibilidade radical, os confrontos entre a busca pela respeitabilidade e a necessidade de romper com a norma heterossexual. É o início de um debate ainda hoje vivo: quem cabe no orgulho e quem continua a ser deixado de fora?
O Peso da Respeitabilidade: A Mattachine Society e a Homonormatividade Inicial
As estratégias de assimilação não nasceram por acaso: emergiram de um contexto de perseguição feroz, mas depressa começaram a excluir as vozes dissidentes.
As tentativas de apropriação das lutas LGBTQIA+ por parte de setores homonormativos da comunidade gay sempre estiveram presentes — e continuam a manifestar-se. Desde as primeiras fases do ativismo institucionalizado, surgiram dentro do próprio coletivo associações que promoviam, com firmeza, a assimilação. O objetivo era alinhar-se com os padrões heterossexuais e corresponder às expectativas da heteronormatividade; apresentar a população LGBTQIA+ como uma extensão aceitável da sociedade dominante, procurando demonstrar que podíamos — e devíamos — ser tão respeitáveis quanto os heterossexuais. Esta estratégia procurava conquistar direitos através da imitação da norma, muitas vezes em detrimento das experiências mais dissidentes e marginalizadas dentro da comunidade.
Um dos grupos mais emblemáticos dessa postura foi a Mattachine Society, que criticou abertamente os motins de Stonewall, considerando que a resistência física e o confronto direto com a polícia prejudicavam a imagem da comunidade gay e era uma expressão de desordem protagonizada por lésbicas, travestis e outros elementos marginais. Os seu líderes estavam particularmente preocupados com a forma como a imprensa e a sociedade poderiam interpretar os motins. Temiam que os protestos pusessem em risco os tímidos avanços que tinham conseguido através da negociação e do ativismo bem-comportado.
Dick Leitsvh, presidente da Mattachine Society nas instalações desta sociedade. Nova Iorque, 30 de dezembro de 1965. Foto por Louis Liotta/New York Post.
A sublevação em Stonewall não foi encenada, foi uma resposta crua e urgente à violência sistemática
Nos dias que se seguiram à revolta de Stonewall, os grandes jornais de Nova Iorque escolheram não amplificar a luta por direitos: preferiram escarnecer, distorcer ou silenciar. Entre títulos sensacionalistas, descrições burlescas e uma linguagem carregada de preconceitos, a imprensa representou os manifestantes como figuras excêntricas e perigosas, apagando-lhes a agência política. O protesto foi tratado como desordem, não como resistência. Este artigo revisita essas manchetes, desmonta o tratamento jornalístico da época e mostra como a homofobia — explícita ou estrutural — foi a verdadeira protagonista das primeiras páginas.
Sensacionalismo e escárnio: o olhar do The New York Daily News
A abordagem sensacionalista do The New York Daily News não só ignorou as razões políticas do protesto, como recorreu a linguagem abertamente ofensiva e desumanizadora.
Os motins de Stonewall foram notícia em vários jornais nova-iorquinos, como o New York Daily News, e tabloide sensacionalista não poupou a comunidade. No dia 6 de julho, fiel ao estilo medíocre que ainda hoje o caracteriza, o NY Daily News, fez dos motins notícia de primeira página, pela pena de Jerry Lisker, com o título mordaz e irónico Homo Nest Raided, Queen Bees Are Stinging Mad. A ilustrar a primeira página, surge a única foto conhecida cuja origem na noite de 28 de junho é confirmada, e que acompanha o texto do artigo anterior. No lide, primeiro parágrafo da notícia, o sarcasmo homofóbico continua na senda do cabeçalho:
She sat there with her legs crossed, the lashes of her mascara‑coated eyes beating like the wings of a hummingbird. She was hungry. She was upset she hadn’t bothered to shave. A day-old stubble was beginning to push through the pancake makeup. She was a he. A queen of Christopher Street. [1]
Reprodução digital da página do The NY Daily News onde se desenvolve a notícia sobre os motins de Stonewall — na época, a edição de domingo do The NY Daily News trazia o nome mais antigo do jornal, Sunday News.
Da repressão à revolta: a noite em que corpos dissidentes deixaram de fugir e esconder.
Neste artigo retomo o relato dos acontecimentos que antecederam e despoletaram a revolta de Stonewall, centrando-me na noite de 28 de junho de 1969 e na rusga policial ao bar Stonewall Inn, em Nova Iorque. Através de uma narrativa cronológica e contextualizada, exploro o papel da máfia na gestão dos bares gay nova-iorquinos, o ambiente de constante repressão e chantagem policial. Denoto ainda a forma como estas dinâmicas culminaram num dos momentos mais emblemáticos da história da resistência LGBTQIA+. Destaco, em particular, a resposta firme e corajosa da comunidade — com especial relevo para as pessoas trans*, travestis, jovens sem-abrigo e trabalhadores do sexo — que enfrentaram a violência institucional com determinação. Este episódio marca o ponto de viragem que catalisou o movimento moderno pelos direitos LGBTQIA+, tornando-se símbolo de orgulho e de luta até aos dias de hoje.
A Máfia e o Stonewall Inn
Antes da revolta, os bares gay de Nova Iorque eram maioritariamente controlados por redes mafiosas que exploravam uma comunidade vulnerável e sem alternativas seguras de socialização.
Durante a década de 1960, Fat Tony (Anthony Lauria), filho de um dos mais famosos mafiosos nova-iorquinos, decidiu, a descontento do seu pai, abrir um bar gay em Greenwich Village, Nova Iorque. O nome do bar: Stonewall Inn.
Fotografia da última noite de protestos na Christopher Street e arredores, onde se localiza Stonewall Inn. Foto: Larry Morris/The New York Times, 2 de julho de 1969.
Como duas noites de revolta prepararam o caminho para o nascimento do orgulho LGBTQIA+
Neste terceiro artigo, da série Do pós-guerra a Stonewall, abordo dois dos mais importantes motins que antecederam a revolta de Stonewall Inn, no ano de 1969, em Nova Iorque. São duas as revoltas que tiveram lugar em cafetarias frequentadas por pessoas LGBTQIA+. A primeira, a revolta de Cooper Do-nuts, aconteceu em maio de 1959, no centro de Los Angeles, Califórnia e foi uma das primeiras revoltas conhecidas lideradas por pessoas LGBTQIA+ contra a opressão policial. A segunda, a revolta de Gene Compton's Cafeteria, aconteceu em agosto de 1966 no bairro de Tenderloin, em São Francisco, Califórnia. Antes, porém, irei apresentar uma breve síntese do contexto socio-político, que envolveu a implementção de um conjunto de medidas repressivas e discriminatórias das pessoas LGBTQIA+, dos EUA, que esteve na origem destas e doutras revoltas.
Os motins cuir de Cooper Do-nuts, em Los Angeles, deram o mote à revolta LGBTQIA+ 10 anos antes de Stonewall