Do pós-guerra a Stonewall – Parte V: Stonewall – A Noite em que a Revolta Começou
Da repressão à revolta: a noite em que corpos dissidentes deixaram de fugir e esconder.
Neste artigo retomo o relato dos acontecimentos que antecederam e despoletaram a revolta de Stonewall, centrando-me na noite de 28 de junho de 1969 e na rusga policial ao bar Stonewall Inn, em Nova Iorque. Através de uma narrativa cronológica e contextualizada, exploro o papel da máfia na gestão dos bares gay nova-iorquinos, o ambiente de constante repressão e chantagem policial. Denoto ainda a forma como estas dinâmicas culminaram num dos momentos mais emblemáticos da história da resistência LGBTQIA+. Destaco, em particular, a resposta firme e corajosa da comunidade — com especial relevo para as pessoas trans*, travestis, jovens sem-abrigo e trabalhadores do sexo — que enfrentaram a violência institucional com determinação. Este episódio marca o ponto de viragem que catalisou o movimento moderno pelos direitos LGBTQIA+, tornando-se símbolo de orgulho e de luta até aos dias de hoje.
A Máfia e o Stonewall Inn
Antes da revolta, os bares gay de Nova Iorque eram maioritariamente controlados por redes mafiosas que exploravam uma comunidade vulnerável e sem alternativas seguras de socialização.
Durante a década de 1960, Fat Tony (Anthony Lauria), filho de um dos mais famosos mafiosos nova-iorquinos, decidiu, a descontento do seu pai, abrir um bar gay em Greenwich Village, Nova Iorque. O nome do bar: Stonewall Inn.
Fotografia da última noite de protestos na Christopher Street e arredores, onde se localiza Stonewall Inn. Foto: Larry Morris/The New York Times, 2 de julho de 1969.
Como afirma David Carter, autor do livro Stonewall, The Riots that Sparked the Gay Revolution (2010, 1.ª edição publicada em 2004).
A Máfia ocupou o vazio existente para gerir bares gay, o que, por sua vez, criou um cenário propício à corrupção policial e à exploração dos clientes desses bares. As vítimas raramente se queixavam, pois não tinham outro lugar para onde ir e temiam a máfia. Além disso, o envolvimento da Máfia nos clubes gay aumentava ainda mais a vulnerabilidade legal de homens gay e de lésbicas (p. 18 – tradução do autor [1]).
Carter mostra-nos como os proprietários do Stonewall e o seu gerente se dedicavam a chantagear os clientes mais abastados, em particular os que trabalhavam em Wall Street, o distrito financeiro de Nova Iorque. Ao que tudo indica, obtinham mais lucros através da extorsão do que com a venda de álcool no bar. Esta extorsão era feita em conluio com a polícia que também lucrava com ela. A dada altura, ao se aperceber de que não estava a receber a sua quota-parte, dos subornos oriundos da chantagem aos clientes homossexuais, decidiu que Stonewall Inn deveria ser definitivamente encerrado.
A Rusga da Madrugada
Na noite de 27 para 28 de junho de 1969, uma operação policial viria a alterar o rumo da história LGBTQIA+. Tudo começou com uma rusga como tantas outras — mas esta teve um desfecho inesperado.
Nessa noite, duas agentes à paisana e duas oficiais da unidade secreta entraram no bar Stonewall Inn, antes da maioria dos clientes chegar. O objetivo era a recolha de provas. Entretanto, a patrulha de moral pública aguardava no exterior, pronta para agir ao sinal combinado. Após reunidas as condições, os agentes infiltrados pediram reforços à esquadra número 6 de Nova Iorque, utilizando a cabine telefónica do próprio bar.
Embora circulasse o rumor de uma rusga, os donos e funcionários do Stonewall não receberam qualquer aviso prévio — algo que era habitual em intervenções anteriores. À 1h20 da madrugada de sábado, 28 de junho de 1969, quatro polícias à paisana, envergando fatos escuros, e dois oficiais uniformizados, o detetive Charles Smyth e o subinspetor Seymour Pine, irromperam pelo Stonewall Inn. Pine, parou à entrada e anunciou: “Police! We’re taking the place!” (Carter 2004, p.137) A música cessou e as luzes principais foram acesas.
Organização do espaço do Stonewall Inn em 1969
Naquela noite, encontravam-se cerca de 205 pessoas no bar. Aqueles que nunca tinham passado por uma rusga policial ficaram em estado de choque, e os poucos que compreenderam o que se passava tentaram escapar pelas portas e janelas das casas de banho, tentativa prontamente frustrada pela polícia, que bloqueou todas as saídas. No entanto, a operação não correu conforme o previsto.
O procedimento habitual consistia em alinhar os clientes, verificar a sua identificação e fazer com que as agentes femininas conduzissem os indivíduos vestidos de mulher à casa de banho para confirmação do seu género. Qualquer pessoa de aparência masculina vestida com trajes femininos era automaticamente detida. Contudo, a situação começou a descambar quando os travestis presentes se recusaram a acompanhar as agentes. Simultaneamente, os homens na fila começaram a recusar-se a apresentar identificação.
A polícia decidiu então levar todos os presentes para a esquadra, uma decisão tomada com brutal determinação. Após separar os suspeitos de travestismo para uma sala nos fundos do bar, o ambiente tornou-se rapidamente tenso e revoltado. Esta tensão aumentou com os abusos cometidos pela polícia contra algumas das mulheres lésbicas presentes, que foram revistadas de forma inapropriada.
A Reação da Multidão
O que era para ser mais uma rusga terminou numa explosão de indignação coletiva. A comunidade, cansada da repressão e da humilhação, respondeu de forma inédita.
Em poucos minutos cerca de uma centena e meia de pessoas reuniram-se na rua em frente ao bar. Algumas tinham acabado de ser libertadas pela polícia e recusavam-se a abandonar o local, outras chegavam alertadas pela movimentação policial e pela multidão em crescimento. Apesar da tentativa da polícia de evacuar forçosamente alguns dos clientes, estes, ao juntarem-se a outros já libertos, responderam com ironia, teatralizando poses e cumprimentos exagerados, usando gestos ostensivos que provocaram risos e aplausos entre os presentes.
Quando chegou a primeira carrinha da polícia, o número de pessoas concentradas à volta do Stonewall era já dez vezes superior ao número de detidos. Seguiu-se um silêncio tenso. Ao verem os donos do bar, membros da família mafiosa Genovese, serem colocados na viatura policial, a multidão rompeu em aplausos. Um transeunte gritou “Poder gay!” e entoaram “We Shall Overcome”.
Essa canção de protesto, originária de um hino gospel composto pelo reverendo Charles Tindley, havia sido transformada numa balada folk por Peter Seeger, tornando-se o hino do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos e ecoando em múltiplas manifestações ao redor do mundo.
Contudo, a tensão cresceu. A multidão reagia ainda com algum humor, mas uma crescente hostilidade começou a fazer-se sentir. A certa altura, um agente empurrou uma pessoa travestida, que reagiu batendo-lhe na cabeça com a mala. A multidão começou a apupar os polícias. Espalhou-se o rumor de que, dentro do bar, os agentes estavam a agredir os clientes e os detidos. Então, começaram a atirar moedas de um cêntimo, seguidas de garrafas de cerveja.
O Corpo Que Se Recusou a Ceder
O momento simbólico que desencadeou a violência foi protagonizado por uma mulher lésbica, cuja resistência catalisou a indignação generalizada da multidão.
A revolta atingiu o auge quando uma mulher lésbica algemada foi conduzida à força várias vezes da porta do bar até à carrinha da polícia, resistindo a cada tentativa. Acabou por ser agredida na cabeça por um agente com à bastonada, quando protestou que tinha as algemas demasiado apertadas. Depois da bastonada, os agentes colocaram-na no interior da carrinha da polícia. Ferida e indignada, a mulher gritou à multidão: “Então não vão fazer nada?” E foi nesse instante que tudo explodiu.
A Tomada das Ruas
O confronto escalou para um verdadeiro motim urbano. A rua tornou-se o palco da revolta e do clamor por dignidade e justiça.
A multidão tornou-se incontrolável, e as cargas físicas usadas pela polícia revelaram-se ineficazes para dispersar os manifestantes. Alguns dos detidos escaparam da carrinha, possivelmente com a conivência dos agentes. A população tentou virar os veículos policiais, cujos pneus tinham sido furados. Mais pessoas se juntavam ao caos, e quando alguém exclamou que a rusga se devia ao não pagamento de subornos, outro respondeu “então vamos pagar-lhes”, lançando moedas no ar em direção à polícia, que recebia também insultos e mais garrafas de cerveja.
Ao recuar, a multidão encontrou-se numa obra em construção repleta de tijolos, que logo foram usados como projéteis. A polícia, em número muito inferior — entre 500 e 600 manifestantes —, deteve alguns indivíduos, mas, incapaz de conter a multidão, acabou por se refugiar no interior do próprio Stonewall Inn. Há quem defenda que tudo estava previamente planeado, embora tal hipótese seja não só contestada, mas historicamente refutada. Michael Fedor, uma testemunha ocular, recordava: “Estávamos fartos daquela merda. Não foi algo pensado, foi uma erupção acumulada. Aquela noite, naquele lugar, foi o limite. Foi a altura de lutar por tudo o que sempre nos haviam negado. Sabíamos que não havia retorno.”
A Noite em Que Tudo Mudou
Os mais marginalizados da comunidade LGBTQIA+ — travestis, pessoas trans*, trabalhadores do sexo e jovens sem-abrigo — assumiram a linha da frente da resistência. O que se passou naquela noite marcaria para sempre a história dos direitos queer.
Com a polícia barricada no Stonewall, a turba começou a atirar caixotes de lixo, garrafas, pedras e tijolos contra o edifício, partindo as janelas. Os membros mais marginalizados da comunidade — trabalhadores do sexo, pessoas trans*, travestis e jovens LGBTQIA+ sem-abrigo — lideraram a resposta violenta. Arrancaram um parquímetro da rua, que usaram como aríete contra as portas do bar.
Esta fotografia – a única foto conhecida dos motins – apareceu na primeira página do The New York Daily News no domingo, 29 de junho de 1969. Aqui podem ver-se os jovens sem-abrigo que foram os primeiros a resistir à polícia. (Domínio público – Wikimedia Commons)
Sylvia Rivera, uma das primeiras ativistas trans* do movimento, juntamente com Marsha P. Johnson — ambas fundadoras de uma associação de apoio a mulheres trans* sem-abrigo — recordava: “Trataram-nos como lixo durante anos. Agora é a nossa vez.” A multidão ateou fogo ao lixo e atirou-o pelas janelas partidas, enquanto os confrontos continuavam, e a polícia ameaçava abrir fogo. As forças de choque da cidade chegaram para libertar os agentes barricados no bar. Um oficial fora ferido com um golpe no olho e outros cinco apresentavam lesões diversas.
Para os polícias, o escândalo era total: tinham sido derrotados por uma multidão de homossexuais, lésbicas, trans* e travestis — algo que jamais imaginaram possível. Os agentes antidistúrbios formaram uma falange para dispersar os manifestantes, mas foram recebidos com escárnio. A multidão formou-se em linhas, dançando o cancã em provocação aberta. Quando a polícia carregou, os manifestantes retaliaram, perseguidos e perseguidores alternavam os papéis pelas ruas. Veículos foram virados para bloquear acessos e os tumultos prolongaram-se até às quatro da manhã.
No próximo artigo regressamos às noites agitadas de junho de 1969, quando as ruas de Greenwitch Village ecoaram com os gritos de liberdade. Exploramos as noites seguintes ao primeiro motim, a reação dos media, as divisões internas do movimento e a chama que continuou a arder.
[1] Texto original de David Carter: The Mafia entered into the vacuum to run gay bars, which in turn set up a scenario for police corruption and the exploitation of the bars’ customers. These victims were not likely to complain, because they had nowhere else to go and because they feared the mob. Moreover, the involvement of the Mafia in gay clubs further in- creased the legal vulnerability of gay men and lesbians.
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Por Orlando Figueiredo, desde as margens.
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