Do pós-guerra a Stonewall — Parte VI: A Imprensa e o Apagamento Político

A sublevação em Stonewall não foi encenada, foi uma resposta crua e urgente à violência sistemática


Nos dias que se seguiram à revolta de Stonewall, os grandes jornais de Nova Iorque escolheram não amplificar a luta por direitos: preferiram escarnecer, distorcer ou silenciar. Entre títulos sensacionalistas, descrições burlescas e uma linguagem carregada de preconceitos, a imprensa representou os manifestantes como figuras excêntricas e perigosas, apagando-lhes a agência política. O protesto foi tratado como desordem, não como resistência. Este artigo revisita essas manchetes, desmonta o tratamento jornalístico da época e mostra como a homofobia — explícita ou estrutural — foi a verdadeira protagonista das primeiras páginas.

Sensacionalismo e escárnio: o olhar do The New York Daily News

A abordagem sensacionalista do The New York Daily News não só ignorou as razões políticas do protesto, como recorreu a linguagem abertamente ofensiva e desumanizadora.

Os motins de Stonewall foram notícia em vários jornais nova-iorquinos, como o New York Daily News, e tabloide sensacionalista não poupou a comunidade. No dia 6 de julho, fiel ao estilo medíocre que ainda hoje o caracteriza, o NY Daily News, fez dos motins notícia de primeira página, pela pena de Jerry Lisker, com o título mordaz e irónico Homo Nest Raided, Queen Bees Are Stinging Mad. A ilustrar a primeira página, surge a única foto conhecida cuja origem na noite de 28 de junho é confirmada, e que acompanha o texto do artigo anterior. No lide, primeiro parágrafo da notícia, o sarcasmo homofóbico continua na senda do cabeçalho:

She sat there with her legs crossed, the lashes of her mascara‑coated eyes beating like the wings of a hummingbird. She was hungry. She was upset she hadn’t bothered to shave. A day-old stubble was beginning to push through the pancake makeup. She was a he. A queen of Christopher Street. [1]


Reprodução digital da página do The NY Daily News onde se desenvolve a notícia sobre os motins de Stonewall — na época, a edição de domingo do The NY Daily News trazia o nome mais antigo do jornal, Sunday News.


Recorrendo a um estilo sensacionalista, típico da imprensa tablóide, o NY Daily News não apenas relatou o que aconteceu — ridicularizou-o de maneira inequívoca e intencionalmente homofóbica, tanto na cobertura dos acontecimentos, como na escolha vocabular do título e no tom geral do texto da notícia. Houve escárnio, ironia desrespeitosa e objetificação, que reforçaram preconceitos da época contra pessoas LGBTQ+.

Homofobia estrutural disfarçada de neutralidade

Mesmo sem insultos explícitos, jornais como o The New York Times reforçaram preconceitos, tratando a revolta como simples perturbação da ordem.

The New York Times e o The New York Post também cobriram os acontecimentos, mas nenhum deles fez do episódio notícia de primeira página como o The NY Daily News. O NYT publicou dois artigos no dia 29 de junho de 1969. O primeiro, intitulado 4 Policemen Hurt in “Village” Raid; Melee Near Sheridan Square Follows Action at Bar; o segundo tinha por cabeçalho Police Again Rout 'Village' Youths; Outbreak by 400 Follows a Near‑Riot Over Raid. Ambos os artigos foram produzidos como relatos básicos, possivelmente redigidos diretamente na redação, sem atribuição a repórteres.

Ainda que o NYT tenha evitado os insultos abertos do The NY Daily News, tratou os eventos de Stonewall como um misto de curiosidade e problema de polícia, e não como um levante legítimo por direitos. Desta vez, a homofobia era estrutural na forma e no conteúdo. A linguagem, embora formal, está carregada de preconceitos. A homossexualidade é vista como uma característica pertinente em contexto criminal e as manifestações são tratadas como motins infundados. O tom geral privilegia a ordem pública sobre os direitos civis e reflete os preconceitos sociais vigentes — a ideia de que a polícia estava a fazer o seu trabalho ao controlar aqueles frequentadores de um bar gay não denota qualquer empatia pelas vítimas da opressão ou compreensão das razões que levaram ao motim. Os próprios termos usados — rampage, melee e hostile crowd —, bem como a absoluta ausência de vozes dos manifestantes, evidenciam uma cobertura alinhada com uma visão discriminatória da comunidade cuir.

O corpo cuir como espetáculo: da marginalização à caricatura

Ao ridicularizar e exotizar os manifestantes, os jornais negaram-lhes voz e apagaram o sentido político das suas ações.

A cobertura jornalística dos acontecimentos de 28 de junho de 1969 em Greenwich Village foi feita em dois tons de homofobia — a do escárnio e a estrutural — com consequências devastadoras para a comunidade cuir.

As pessoas LGBTQIA+ foram retratadas como figuras estéticas excêntricas e não como sujeitos políticos conscientes, o que levou ao apagamento do significado político dos protestos, que passaram a ser descritos como um momento teatral, senão mesmo surreal. A ausência de vozes da comunidade na generalidade dos meios de comunicação da época levou a que as pessoas LGBTQIA+ fossem vistas como um outro exótico e excêntrico.

Na noite seguinte, os distúrbios recomeçaram. Milhares reuniram-se frente ao bar Stonewall Inn, que reabrira, acabando por encher a Christopher Street e as artérias adjacentes. Aparentemente o medo tinha desaparecido. Pessoas da comunidade manifestavam livremente o seu afeto — beijando-se, abraçando-se, expressando-se em público. Mas a realidade é mais dura. Stonewall foi um protesto, uma manifestação de luta por direitos sonegados, e a violência policial fez parte dos acontecimentos. Mais de uma centena de polícias foram destacados para a zona. A polícia de choque chegou por volta das duas da manhã. Houve perseguições e detenções e a multidão insurgiu-se contra os polícias, tentando libertar os manifestantes que eram detidos. Os confrontos prolongaram-se até às 4h00 da madrugada.


A comunidade cuir, nas imediações do bar Stonewall Inn, nos dias que se seguiram aos motins de 28 de junho. Larry Morris/The New York Times.

Nos dias seguintes, em particular na madrugada de 3 de julho, a chuva trouxe alguma calma às ruas de Greenwich Village. No entanto, os manifestantes aproveitaram a oportunidade para se organizarem. Nasceu um movimento que propunha o boicote aos bares controlados pela máfia — como o Stonewall — e exigia ao mayor de Nova Iorque o fim da discriminação contra a comunidade LGBTQIA+. Contudo, as divergências internas não tardaram em surgir. Alguns setores da comunidade gay, que defendiam uma homossexualidade respeitável, discreta e heteronormativa, repudiaram os motins, criticando a presença de travestis, drags, gays afeminados e demais expressões não conformes. Chegaram mesmo a aplaudir o encerramento de espaços como o Stonewall, que consideravam decadentes e prejudiciais à reputação do Village e da comunidade cuir heteronormativa.

O The Village Voice e a traição da imprensa progressista

Mesmo vindo da contracultura, o The Village Voice reproduziu os mesmos preconceitos, expondo os limites da aliança progressista com a causa queer.

No dia 3 de julho saíam dois artigos no jornal local de Greenwich Village, The Village Voice, um jornal alternativo com raízes na contracultura nova-iorquina, e próximo do universo hippie em termos de contexto sociocultural, ainda que nãofosse um veículo ativo dessa corrente cultural. Os artigos intitulados Gay Power Comes to Sheridan Square, escrito por Lucian K. Truscott IV, e Full Moon Over the Stonewall, de Howard Smith, mostram bem a prevalência das duas instâncias de homofobia com que a imprensa da época cobriu os acontecimentos.

O artigo de Truscott é particularmente ofensivo e não mostra qualquer solidariedade para com a comunidade cuir, nem o menor esforço de compreensão dos motivos que levaram à revolta. A própria expressão Gay Power usada no título não valoriza a afirmação política, pelo contrario, retrata os acontecimentos como uma provocação ruidosa comunidade cuir. A linguagem de que Truscott se socorre é fortemente pejorativa, e o autor usa termos como faggotfaggotry e fag follies, reconhecidos hoje e à época como insultos homofóbicos, empregados para humilhar e desumanizar as pessoas cuir. O escárnio e a ridicularização estão bem presentes no texto, em expressões como:

“The forces of faggotry […]”, “[…] the Sunday fag follies […]”, “[…] the queen in question had lost her wig and her mascara was running […]”, “[…] a full-blown queen […]” ou ainda […] his voice was a falsetto shriek of rage […]” [2]

que denotam uma estereotipagem burlesca, com ênfase no aspeto físico e emocional das pessoas, em detrimento das causas políticas que as levaram ali.

O enquadramento enviesado, visível em expressões como:

“the action was very diverting…” ou “it was all just a good show…” [3]

trata os confrontos como uma excentricidade urbana e retira agência política à comunidade, minimizando a importância da luta pelos direitos civis.


Digitalização da página 3 da edição de 3 de julho do The Village Voice.

O tom do artigo de Howard Smith é bastante diferente do anterior, mas ainda assim revela indícios de homofobia estrutural implícita e uma linguagem ambígua. Logo no título, através da expressão Full moon madness, estabelece-se uma relação entre o comportamento das pessoas cuir e o descontrolo, a loucura e a irracionalidade. A homofobia continua, com a hiperssexualização dos corpos cuir — tidos como exóticos ou estranhos — presente em expressões como “boys in tight pants” ou “gyrating hips”. Além desta hiperssexualização, encontramos uma fetichização das pessoas LGBTQIA+ enquanto figuras estéticas excêntricas, em frases como “The street had a carnival air” e “Slick-haired boys with hips of mercury”. Por fim, a ausência de qualquer contextualização política e de luta pelos direitos civis, associada a um enfoque exclusivo na espetacularidade da noite — patente em frases como “I stood there, watching the drag queens shriek and the cops retreat” — contribui para o apagamento do significado político dos protestos e da agência da comunidade cuir na reivindicação dos seus direitos e do respeito que é devido a todos os seres humanos.

A comunidade LGBTQIA+ ficou particularmente zangada e dececionada com a forma como o jornal tratou o assunto. Tendo este, desde a sua fundação em 1955, um pendor progressista e de contracultura urbana, esperava-se maior seriedade, solidariedade e compreensão ao noticiar os motins.

A coragem dos que não podiam recuar

Stonewall foi possível porque os mais vulneráveis disseram basta. Foram eles que abriram caminho para a revolução que se seguiu.

Os motins de Stonewall Inn estão longe de ser obra de um grupo de exaltados alucinados numa madrugada, como a imprensa da época descreve, recorrendo alternadamente a uma homofobia estrutural ou ao sarcasmo homofóbico. Os motins representaram a visibilização de toda a comunidade LGBTQIA+: pessoas cuir, não só do grupo heteronormativo e tido como respeitável, mas sobretudo dos marginalizados dentro do próprio movimento. A eles devemos o início da luta, pois foram essas pessoas — as que pouco ou nada tinham a perder — que arriscaram tudo: a reputação, a integridade física e a própria vida, para dizer basta.


Notas:
[1] Ela estava sentada com as pernas cruzadas, as pestanas dos olhos cobertos de rímel a bater como as asas de um beija-flor. Tinha fome. Estava incomodada por não ter feito a barba. A barba por fazer, de um dia, começava a romper pela base da maquilhagem espessa. Ela era um ele. Uma rainha da Christopher Street.
[2] «As forças da bichice […]», «[…] as folias domingueiras das bichas […]», «[…] a rainha em questão perdera a peruca e o rímel escorria-lhe pela cara […]», «[…] uma rainha em todo o seu esplendor […]» ou ainda «[…] a sua voz era um falsete estridente de raiva […]»
[3] «a ação era muito divertida…» ou «foi tudo apenas um bom espetáculo…»

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Por Orlando Figueiredo, desde as margens.


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